Consciencializar para a diferença sem rotular
Em menos de um segundo, a nossa mente avalia, categoriza e produz julgamentos acerca das outras pessoas com base em características como o género, raça ou etnia, idade, orientação sexual, entre outras, o que acaba por resultar em preconceitos ou enviesamentos inconscientes.
Publicado em 16 de Fevereiro de 2022 às 17:18
Por Cofina Boost Content
Numa altura em que cada vez mais os temas de diversidade e inclusão fazem parte das estratégias empresariais e sociais, contribuindo para uma maior criatividade e melhores resultados, continuam a existir obstáculos no processo de se alcançar uma sociedade capaz de eliminar a discriminação. Por vezes, essas barreiras são criadas de forma inconsciente, mas de facto originam comportamentos e atitudes discriminatórias.
Para explicar melhor este conceito, Vânia Magalhães, representante em Portugal da +Diversity, uma consultora especializada em processos estratégicos de diversidade, inclusão e liderança inclusiva, refere que “o enviesamento inconsciente acontece quando nos deparamos com um conjunto de modelos mentais, dos quais não temos plena consciência, e dão origem a opiniões e comportamentos não inclusivos”. São preconceitos formados de maneira antecipada, sem o devido conhecimento ou reflexão sobre um determinado assunto. Muitas vezes inconscientes e em piloto automático.
A representante em Portugal da +Diversity, formadora e coach especializada em áreas de desenvolvimento pessoal, alerta que “é muito comum no meio profissional associar um bom desempenho em posições de liderança à universidade em que estudaram, sem que se tenham outras evidências a corroborar. Ou entender que uma pessoa, porque ultrapassou determinada idade, é resistente à mudança e não abraçará as mudanças tecnológicas na empresa”.
Outro exemplo, em contexto diferente, dado por Vânia Magalhães é “o de atravessar a rua para não se cruzar com alguém cuja aparência dá uma sensação de perigo. Muitas vezes, a fronteira entre preconceito consciente e inconsciente é ténue”.
Novas formas de discriminação
Sobre esta temática, a investigadora, psicóloga social e das organizações e professora do ISCTE, Miriam Rosa, explica que “se pode chamar a estes enviesamentos inconscientes de formas de discriminação moderna”. Para a investigadora, com o surgimento de leis antidiscriminação, e normas de interação nas quais se sinaliza que já não é aceitável expressar preconceito abertamente, “as pessoas encontraram formas novas de expressar os preconceitos existentes”. Miriam Rosa refere que esses fenómenos começaram a ser estudados no âmbito do racismo. “Novos racismos, tais como racismo subtil, racismo aversivo ou racismo ambivalente, têm em comum a ideia de que as pessoas passaram a manifestar o racismo de formas menos flagrantes, mas com as mesmas consequências negativas, que no meio organizacional se traduzem em perda ou subaproveitamento de talento, conflitos, entre outros.”
As pessoas passaram a manifestar o racismo de formas menos flagrantes, mas com as mesmas consequências negativas, que no meio organizacional se traduzem em perda ou subaproveitamento de talento, conflitos, entre outros.
A investigadora e psicóloga social salienta que “já se percebeu que o mesmo acontece com outras formas de preconceito e discriminação como, por exemplo, o sexismo ou o idadismo (discriminação com base na idade)”.
Como exemplo prático destas situações a investigadora refere o caso de, “numa entrevista de emprego, os/as recrutadores/as darem menos tempo, fazerem menos contacto visual, ou sentarem-se mais longe de candidatos/as que pertençam ao grupo social sobre o qual existe enviesamento”. São comportamentos que no seu entender “influenciam o nervosismo e o desempenho desses/as candidatos/as”. E, sublinha a ideia de que, “o enviesamento inconsciente é uma espécie de termo mais ‘comercial’ para essas formas de preconceito subtil”.
Perante a pergunta se rotular é o vetor comum quando se fala de enviesamento inconsciente, Miriam Rosa garante que “rotular faz parte, mas não conta a história toda”. Existe um trio de fatores envolvidos e que são muitas vezes difíceis de separar.
A investigadora e professora auxiliar convidada no ISCTE detalha que o primeiro fator são os estereótipos. “A tal rotulagem, ou seja, pensar que determinada pessoa, por fazer parte de um determinado grupo, tem forçosamente um conjunto de características.” Reconhece que estereotipar é extremamente útil porque nos permite poupar recursos cognitivos, mas muitas vezes implica enviesamentos. Exemplifica este cenário: “Imagine uma equipa de parceiros alemães numa reunião de negócios achar que o João vai chegar atrasado porque é português, e os portugueses e portuguesas chegam sempre com atraso (quando o João até pode ser muito pontual).”
O segundo fator é o preconceito. “Um sentimento geralmente negativo em relação àquela pessoa porque pertence àquele grupo, e que vai formar uma avaliação também ela negativa.”
O terceiro e último fator é a discriminação. “Quando juntamos a parte cognitiva (estereótipos) à parte afetiva (preconceito) temos as condições reunidas para o terceiro fator, que é a discriminação (comportamento propriamente dito).”
Como combater os enviesamentos?
Se os enviesamentos são inconscientes, como se podem gerir e combater? Miriam Rosa afirma que, para conseguir chegar a esse preconceito subtil, alguns psicólogos e psicólogas sociais propuseram o chamado teste de associação implícita, que hoje se pode fazer rapidamente pela Internet, e que usa o tempo que uma pessoa leva a reagir a dois estímulos (palavras, imagens) como um indicador da força com que estão associados. A professora do ISCTE refere, por exemplo, que “se uma pessoa leva menos tempo a associar a palavra ‘homem’ à palavra ‘competente’ do que a palavra ‘mulher’, poderá significar uma associação mais positiva e preferência por homens no trabalho”. Atribuir este teste a preconceito e discriminação é algo que tem sido alvo de muita controvérsia no meio académico, e visto com muita cautela. No entanto, “a ideia chegou ao mercado diluída e sem filtros, como tantas outras, e com grande popularidade, mas também com vários riscos”, alerta.
As organizações têm estado cada vez mais sensíveis à diversidade, o que é um ótimo sinal. Várias ações de formação e sensibilização têm sido realizadas sobre enviesamentos inconscientes, com a ideia de os trazer à superfície para se poder agir sobre eles.
As organizações têm estado cada vez mais sensíveis à diversidade, o que é um ótimo sinal. Várias ações de formação e sensibilização têm sido realizadas sobre enviesamentos inconscientes, com a ideia de os trazer à superfície para se poder agir sobre eles. A investigadora destaca que apesar de essas iniciativas serem louváveis e bem-intencionadas, “são muitas vezes apresentadas como algo normalizado, uma narrativa do tipo todos temos enviesamentos inconscientes, o que pode acabar por ter o efeito contrário e, em vez de prevenir o preconceito, banaliza-o ou desinibe-o. Se todos temos esses enviesamentos, então é algo normal e não há como os modificar, não somos responsáveis por eles, ou até mais vale assumi-los abertamente.”
Ter a noção dos enviesamentos não leva automaticamente a mudar o comportamento para melhor, até porque depende do tipo de preconceito em questão. Miriam Rosa deixa um alerta. “Foram realizados vários estudos sobre a eficácia deste tipo de formações desde o início dos anos 2000, e as indicações são bastante desanimadoras.” Admite que “se bem geridas, estas formações podem ser ferramentas importantes, quando acompanhadas de estratégias de ação. É aqui que entra uma tão necessária sinergia entre as organizações e a investigação, que possa ir além de sensibilizar os indivíduos, e faça uma avaliação de necessidades concretas e da forma como o preconceito e a discriminação são tratados na organização como um todo”.
Para responder à pergunta como se pode combater este tipo de comportamentos, Vânia Magalhães é perentória: “Tomando consciência. Só tomando consciência se podem tomar medidas concretas e gerar estratégias para os ultrapassar e começar a criar sistemas para evitar que os preconceitos interfiram nas nossas decisões e na maneira como nos relacionamos.”
Só tomando consciência se podem tomar medidas concretas e gerar estratégias para os ultrapassar e começar a criar sistemas para evitar que os preconceitos interfiram nas nossas decisões e na maneira como nos relacionamos.”
Reconhecer a existência de preconceito é mesmo o primeiro passo. Vânia Magalhães admite que são cada vez mais as empresas e as entidades que estão a criar departamentos ou planos de ação de diversidade e inclusão abordando estas temáticas no seu planeamento e atividades. No entanto, é necessário que esta realidade saia do papel e existam ações práticas e concretas nas organizações. “A diversidade é uma mais-valia, somos a soma das pessoas que nos rodeiam, quanto mais diversa uma equipa, um departamento, um grupo de amigos, mais pontos de vista se recolhem, mais rica é a experiência”, diz a representante portuguesa da +Diversity, acrescentando que “do lado das empresas ainda há um longo caminho a percorrer, talvez haja boa intenção, mas falta muita ação”. Vânia Magalhães acredita que muitas vezes a inclusão não sai do papel, e na prática não se verifica uma cultura organizacional verdadeiramente inclusiva e diversa e em que impera a segurança psicológica e a verdadeira conexão entre as pessoas.
Sugere ainda que o trabalho passa por ultrapassar os preconceitos e promover ativamente a inclusão de determinados grupos de pessoas a quem não são dadas as mesmas oportunidades. “Não podemos fazer da inclusão uma bandeira em dias temáticos e postar nas redes sociais, ou criar materiais de marketing com imagens inclusivas e depois a realidade das organizações estar longe de o ser e onde os/as colaboradores/as e clientes não se sentem integrados/as por causa das suas diferenças, ou não veem assegurados os mesmos benefícios ou, onde o tema não é sequer debatido e é mesmo tabu”. Reconhece que há muito caminho já feito, mas acredita que realmente há muito trabalho pela frente que exige o envolvimento de todas as partes interessadas, organismos públicos, empresas, trabalhadores e trabalhadoras das empresas, sociedade civil, media, no sentido da consciencialização do que ainda se vive.
A diversidade é uma mais-valia. Somos a soma das pessoas que nos rodeiam, quanto mais diversa for uma equipa, um departamento, um grupo de amigos, mais pontos de vista se recolhem, e mais rica é a experiência.”
Para concluir, Vânia Magalhães advoga a necessidade urgente de uma mudança de paradigma que entenda que “a diversidade é catalisadora do crescimento e desenvolvimento organizacional e pode mesmo ter impacto nos seus indicadores económicos como já vem sendo divulgado pela Organização Internacional do Trabalho”.
Miriam Rosa, investigadora e professora do ISCTE, também corrobora que as empresas estão cada vez mais atentas a estas questões, procurando saber mais sobre enviesamentos. “Já perceberam que, num mundo globalizado e diverso, é muito importante abraçar e gerir a diversidade na força de trabalho. Embora isto não se aplique a todas as empresas, é um sinal extremamente positivo”, mas reconhece que algumas empresas estão a ficar apenas por “um conjunto de ações de sensibilização cuja eficácia, a ser alguma, é de curto prazo, o que é uma pena se essa for a única forma de atuação”.
Para a psicóloga social e das organizações, para combater os enviesamentos, “as empresas podem desenvolver e promover competências, tais como a tomada de perspetiva sobre os outros”. Muitas vezes, basta tirar o foco de um discurso de combater os enviesamentos, ou reduzir a discriminação, para um discurso sobre aumentar a inclusão. É desejável promover um ambiente em que as pessoas sentem que pertencem à organização, e que são valorizadas por aquilo que são e pelo contributo único que trazem. Em termos de ações mais visíveis, a mais imediata é “não tolerar situações de discriminação na empresa, das mais flagrantes às mais subtis”, defende Miriam Rosa.
Outra ação passa por um trabalho mais de fundo, por criar regras e procedimentos claros e uniformizados, de forma que as pessoas de grupos não discriminados também sejam incluídas e não sintam que vão ficar a perder.
Eternas desigualdades com base no género ou na orientação sexual
No mundo do trabalho, e quando se fala de preconceitos, ainda subsistem muitos casos de desigualdade na forma de tratar homens e mulheres. A presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género (CIG), Sandra Ribeiro, sublinha que o foco de atuação desta entidade são “as questões das desigualdades entre homens e mulheres e também os direitos das pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais). São duas áreas em que há muito a lógica dos enviesamentos.”
Sandra Ribeiro refere que, nesta lógica, “surgem situações em que parece que não há discriminação nenhuma, parece que é tudo regular e dentro das normas, mas na verdade há um falso normal”.
A título de exemplo aponta casos em que, no ambiente profissional, se marcam as ações de formação fora do período normal de trabalho, ao final da tarde ou princípio da noite, nas quais se percebe que há muito mais homens do que mulheres a frequentar. Sandra Ribeiro sublinha que “parece que não há nenhuma situação de discriminação, mas percebemos que, de uma forma geral, são as mulheres que fazem mais tarefas domésticas, logo são elas que no fim da jornada têm menos disponibilidade para irem fazer uma ação de formação”.
A presidente da CIG explica que “este enviesamento acaba por incorporar aquelas situações de discriminação indiretas, que não são muitas vezes conscientes. Mas é a forma como a sociedade vê o papel de mulheres e homens que nos faz atuar de uma certa maneira, pensando que estamos a ser neutrais, mas na verdade estamos, com o enviesamento de género, a criar medidas”.
Na área laboral, muitas vezes há ações de conciliação da vida pessoal com a profissional dirigidas, sobretudo, às mulheres para que tenham mais oportunidades para estar com os filhos e filhas. Face a este cenário, Sandra Ribeiro questiona: “Porquê dirigidas às mulheres? Só as mulheres é que precisam de conciliar? Já se parte do princípio de que só são as mulheres quem trata das crianças e da casa.” E defende que: “É a normalidade instituída que nos faz, normalmente, ter pensamentos ou medidas com enviesamento de género sem estarmos conscientes de que estamos com esse enviesamento.” E, mais uma vez, surgem os rótulos, em que o denominador comum são os estereótipos e os preconceitos.
Podemos estar a criar enviesamentos de género praticamente insondáveis, que nos passam ao lado, porque vêm através destes algoritmos.”
A presidente da CIG alerta ainda que, nesta fase, em que se está a viver a transição digital, há uma nova “dimensão que se torna mais perigosa ou mais difícil de detetar estes enviesamentos”.
Isto porque cada vez mais se utilizam os algoritmos para a coordenação de trabalhos em várias áreas ou mesmo para a disponibilização de serviços públicos e privados. De acordo com Sandra Ribeiro, devido ao facto de a maioria das pessoas que trabalham em tecnologias serem do sexo masculino, “a maior parte dos algoritmos que vão sendo criados são feitos por homens e muitas vezes têm em conta, não conscientemente, as preocupações masculinas, os gostos e as necessidades masculinas”. Por isso, conclui que “poderemos estar a criar enviesamentos de género praticamente insondáveis, que nos passam ao lado, porque vêm através destes algoritmos”.
Outro exemplo que considera interessante, sobre enviesamento de género, acontece na indústria automóvel, normalmente tida como muito masculina. Os carros são quase sempre pensados para os homens, já que são eles quem conduz mais, são mais atraídos pelas máquinas e pela velocidade. Também já se constatou que o próprio tamanho dos airbags, a distância entre o banco e o volante, é tudo pensado tendo em conta a altura média dos homens e não das mulheres. “Estas são situações de discriminação, de enviesamento de género, que quem o está a fazer não está a achar que está a ser discriminatório”, logo é inconsciente.
Para Sandra Ribeiro, “as ferramentas para atacar estas situações são a informação, o esclarecimento e a educação, para que a sociedade seja menos estereotipada e tenha menos desigualdades. As nossas crianças devem ser educadas para a igualdade e não nos preconceitos que nos passam despercebidos, mas que, efetivamente, passam de geração em geração”.
A presidente da CIG realça que as empresas fazem parte do tecido social, sendo que todo o status quo ainda marcado pela desigualdade de género é transversal a todas as áreas de atividade. Admite que nas multinacionais já existe, com alguma sustentabilidade, “um investimento grande em políticas de gestão para a inclusão, para a diversidade e para a promoção da igualdade entre homens e mulheres”. Até porque, de acordo com Sandra Ribeiro, “são as grandes empresas que conseguem perceber que tiram dividendos quando se tem diversidade e, naturalmente, maior criatividade. Essas empresas têm cada vez melhores resultados.”
As ferramentas para atacar estas situações são a informação, o esclarecimento e a educação, para que a sociedade seja menos estereotipada e tenha menos desigualdades.”
Sobre a comparação entre a realidade portuguesa com os restantes países, a presidente da CIG reconhece que “não estamos piores, estamos a evoluir devagar. Há cada vez mais empresas que estão em Portugal que são bons exemplos e que têm boas práticas, sendo até parceiros da CIG e das plataformas e pactos que vão sendo feitos para a promoção da igualdade nas empresas.”
No entanto, não nega que “quando se olha para a desigualdade salarial, para o número de mulheres em cargos de direção face aos homens, ou quando se vê que a segregação profissional continua a ser enorme, com a esmagadora maioria dos homens nas áreas das ciências e das engenharias e as mulheres a continuarem nas áreas de cuidado, não podemos dizer, genericamente, que haja uma grande evolução”. Mas, Sandra Ribeiro destaca que “o assunto está na agenda dos decisores, o tema é debatido pela comunicação social, é promovido pelos governos. É uma matéria que ganhou a dignidade que merecia”.
Sobre os direitos da comunidade LGBTI, Sandra Ribeiro afirma que, nos últimos anos, tem havido um progresso enorme, nomeadamente, ao nível da legislação nacional e das políticas públicas. Detalha que, há 12 anos que no País há a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo dos primeiros Estados-membros a legislar nesse sentido. Há a possibilidade de adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo. “Em Portugal reconhecemos os direitos das pessoas LGBTI e houve um grande progresso na legislação sobre as pessoas trans no seu direito à identidade de género”, refere Sandra Ribeiro, reconhecendo que, ainda assim, as mentalidades não se mudam por decreto. Se na teoria há uma evolução, a questão coloca-se na prática. “Ainda temos muitas dificuldades e há uma grande censura social referente às pessoas LGBTI”, conclui a presidente da CIG.