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Sociedade inclusiva ou preconceituosa: qual a realidade em Portugal?

Sociedade inclusiva ou preconceituosa: qual a realidade em Portugal?

Determinados grupos da sociedade, correntemente designados de minorias, ainda sentem no dia a dia o poder discriminatório de certas atitudes e expressões. Quer seja por serem de diferente origem étnica, por terem algum tipo de deficiência, por serem mulheres, pela sua orientação sexual ou identidade de género – os preconceitos na nossa sociedade ainda são uma realidade bastante presente. Por isso mesmo, impõe-se abertura ao que é diferente, desconstrução de preconceitos e uma urgente mudança de mentalidades.


Publicado em 20 de Dezembro de 2021 às 12:12
Por Cofina Boost Content

A sociedade tem se organizado a partir de grupos homogéneos, gerando assim desigualdade, discriminação e exclusão das pessoas que se afastam do grupo de referência ou dominante. Em situações extremas, pode deixar pessoas sem acesso à educação, aos serviços sociais, ao sistema de saúde e ao mercado de trabalho.

A exclusão pode ser determinada por desconhecimento e pela existência de estereótipos e preconceitos a cerca do outro, do desconhecido. O caminho para se ter uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa pressupõe a eliminação de estereótipos e preconceitos que ainda subsistem não só em Portugal, como a nível mundial, contra determinadas minorias.

Expressões e atitudes racistas, discriminatórias e depreciativas ainda são uma realidade quer sejam adotadas de forma consciente ou não. No dia a dia é frequente usar-se expressões ou mesmo provérbios populares que revelam algum tipo de preconceito, acabando os ostracizar determinados grupos de pessoas. O simples facto de se usar ditos populares – como “A mulher honrada sempre deve ser calada”, “Um olho no burro, outro no cigano”, “Pareces uma menina” –, e sem nos apercebermos, já se está a perpetuar estereótipos negativos.

Comunicar sem excluir

A associação Fala Terra fez o levantamento de expressões que têm uma conotação preconceituosa e lançou o “Glossário de Expressões Discriminatórias”, dirigido a quem produz conteúdos e à sociedade em geral com o mote de se tentar perceber onde é que se pode mudar a linguagem e tornar a comunicação mais justa e inclusiva.

A presidente da Fala Terra, Carla Isidoro, explica que “são expressões que são usadas de forma corriqueira, mas que discriminam, põem determinadas pessoas de parte e privilegiam determinadas pessoas em detrimento de outras”. Para Carla Isidoro, “esta é uma maneira de mudar comportamentos, ajudar as pessoas a tomarem consciência de que determinadas expressões não devem ser perpetuadas porque podem magoar, reduzir e catalogar as pessoas”.

A cofundadora da Fala Terra sublinha que ainda não há um levantamento a nível nacional sobre os preconceitos que continuam a existir, mas refere que nos últimos dois anos estas discussões têm sido levantadas e discutidas publicamente, sobretudo, nas redes sociais.

“Conseguimos perceber que, de facto, existe muita discriminação na maneira como comunicamos uns com os outros. Pessoas que se sentem postas de parte, que se sentem discriminadas, sejam mulheres, pessoas negras ou com algum tipo de deficiência, têm levantado a sua voz nos últimos anos de uma forma sem paralelo na sociedade portuguesa”.

Carla Isidoro assume que existe discriminação na sociedade portuguesa nas suas várias vertentes, cenário que só irá desaparecer com a mudança de mentalidades. O processo de mudança já se iniciou, mas demora bastante tempo. Ainda assim, destaca que “estamos num patamar mais elevado do que há dois anos. Houve melhorias enormes”. Referindo-se à componente de género, defende que “precisamos de ver mais mulheres em todos os cargos. Ainda vivemos numa sociedade em que os homens ocupam a maioria dos lugares de decisão”, diz a presidente da associação Fala Terra.

Mesmo com a publicação de livros que reforçam a consciência para o papel da representatividade das mulheres na sociedade, ainda não é suficiente.

Mais consciência inclusiva e responsável

Carla Isidoro admite que já começa a haver “uma consciência mais inclusiva e responsável nas empresas. Vemos isso a acontecer nos programas de diversidade e inclusão que muitas empresas estão a adotar em Portugal”. E sublinha que a questão da representatividade é importante porque “quantas vezes olhamos para determinadas estruturas institucionais, sejam multinacionais ou grandes empresas, e continuamos a ver que são homens brancos que estão na decisão. São maioritariamente as mulheres que estão na base da sua estrutura e, mais grave ainda, raramente conseguimos encontrar mulheres negras em lugares de expressividade”.

A mesma fonte conclui: “Tudo isto implica uma reestruturação interna que demora muito tempo, cria muito atrito e implica que haja uma mudança na estrutura e nas próprias equipas.”

Os estereótipos e preconceitos que levam à discriminação têm como base variadas dimensões da identidade pessoal, particularmente as diferenças relativas ao sexo, identidade de género, orientação sexual, etnia, religião, língua, nacionalidade, idade, estado civil, situação familiar, situação económica, estado de saúde e deficiência. Vamos agora focar na discriminação com base no género e na deficiência.

Quando se trata de discriminação de género, as mulheres continuam a ser mais discriminadas do que os homens, sendo muitas vezes alvo de expressões sexistas, tem menos oportunidades de acesso a cargos de decisão e têm maior pressão social para conciliarem o trabalho doméstico com o emprego. O trabalho de cuidados não remunerado levado a cabo por mulheres é quase o dobro daquele que é realizado por homens nos países da OCDE. Ao nível das tarefas domésticas, em Portugal, a mulher efetua, em média, 74% dessas tarefas, enquanto o homem com quem vive efetua, em média, 23%, de acordo com um estudo da Fundação Manuel Francisco dos Santos, baseada em dados da OCDE.

De acordo com as Nações Unidas, em todo o mundo as mulheres são mais afetadas pela pobreza e a pandemia COVID-19 veio agravar ainda mais as condições de vida das mulheres economicamente mais vulneráveis.

As desigualdades entre mulheres e homens continuam notórias ao nível dos rendimentos, nos ganhos (17,1%) e nas pensões (28,4%), sendo que, 69% dos pensionistas com pensões mais reduzidas (até 438,81€) são mulheres.

O apelo das Nações Unidas

Face a este cenário, que se repete um pouco por todo o mundo, as Nações Unidas têm apelado aos Estados que se comprometam com a iniciativa “Construir o nosso futuro em conjunto”, em que se defende, por exemplo, acabar com as desigualdades estruturais endémicas que perpetuam a pobreza, em particular a das mulheres, investindo, por exemplo, em empregos de qualidade. Pretende-se implementar uma recuperação inclusiva garantindo-se que ninguém fica para trás, evitando o aumento da vulnerabilidade de determinados grupos populacionais, em que mais uma vez as mulheres são o foco. A adoção por parte dos Estados de compromissos políticos concretos que tenham em consideração todas as mulheres e raparigas, dotados de investimentos relevantes que visem a realização da igualdade entre mulheres e homens, será uma das ferramentas para se concretizar este propósito.

No local de trabalho, a estimativa global para a diferença de remuneração entre mulheres e homens é de 23%. Dados das Nações Unidas referem que, atualmente, por cada dólar auferido por um homem, uma mulher recebe apenas 0,77 cêntimos. Na União Europeia, as mulheres recebem, em média, menos 16%/hora do que os homens. Em Portugal, dados INE, indicam que a diferença salarial entre mulheres e homens situa-se nos 14,4%, um valor acima da média dos países da OCDE, que ronda os 13%. Mesmo para o desempenho da mesma função, a desigualdade salarial ainda persiste.

Ainda nenhum país conseguiu pôr termo à desigualdade remuneratória que penaliza as mulheres em relação aos homens. Tanto a Organização Internacional do Trabalho como a OCDE e a ONU Mulheres têm chamado a atenção para a lentidão dos progressos feitos nesta matéria.

Dois séculos e meio para se atingir a paridade salarial

A este ritmo, antecipa-se que serão necessários mais de 257 anos para, globalmente, se acabar com esta desigualdade.

De acordo com o recente estudo “Livro Branco sobre Equilíbrio entre Mulheres e Homens nos Órgãos de Gestão e Planos para a Igualdade nas Empresas”, a lei da paridade nas empresas cotadas em bolsa resultou, em três anos, num aumento de mulheres em cargos não executivos, mas não teve o mesmo efeito em cargos executivos. O estudo, desenvolvido no âmbito do projeto “Women on Boards” – realizado nos últimos três anos –, conclui que “se verificou uma evolução positiva em termos numéricos, com efeito notório nas maiores empresas cotadas em bolsa”.

Ainda que aquém da paridade, os 28,1% de mulheres nos órgãos de administração das empresas do PSI-20 identificadas em maio de 2021 representam um aumento de 25,5 pontos percentuais face a 2008. Por um lado, há um aumento na nomeação de mulheres para cargos não executivos e de fiscalização. Mas, por outro lado, esse crescimento não teve o mesmo efeito no que se refere a nomeações para cargos executivos, dizem os autores do estudo. “Apenas uma mulher ocupa o cargo de Chief Executive Officer (CEO) e duas mulheres presidem a órgãos de administração daquelas empresas.”

Valorizar sem discriminar

Em Portugal, durante a crise pandémica, o número de desempregados com deficiência inscritos no Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) aumentou 10%, registando-se uma forte descida nas contratações. Os números do IEFP e do Instituto Nacional para a Reabilitação (INR) indicam que apenas 17% das pessoas com deficiência têm rendimentos do trabalho, sendo que a maioria vive dependente de prestações sociais (65,7%).

Face a este cenário, é urgente pensar numa empregabilidade inclusiva, que seja vista com naturalidade a curto prazo. A Lei nº4/2019 estabeleceu um regime obrigatório de quotas de contratação de pessoas com deficiência, aplicável a médias e grandes empresas, que está ainda longe de ser cumprido. Mas começa a haver exemplos de progresso, até porque as quotas têm de ser alcançadas no prazo de quatro a cinco anos, consoante a dimensão da empresa. Existem subsídios para financiar as adaptações necessárias do posto de trabalho para a pessoa com deficiência, seja em termos de mobilidade e acessos ou de dispositivos especiais. O IEFP disponibiliza diversos instrumentos de apoio à inserção profissional de Pessoas com Deficiência, desde a seleção e recrutamento à adaptação do posto de trabalho, passando pela redução ou isenção de taxas.

Apesar de o panorama não ser ainda de total inclusão, a verdade é que começam a nascer na sociedade iniciativas que não querem deixar ninguém para trás. É o caso da Unidade de Missão Valor T, cujo propósito é dedicado às pessoas com deficiência e na sua empregabilidade.

A diretora da Valor T, Vanda Nunes, explica que esta plataforma pretende gerar parcerias com as entidades empregadoras, e surge “como um contributo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para garantir um processo de recrutamento concebido para potenciar e valorizar as competências, o talento, das pessoas com deficiência e para traduzir uma resposta efetiva às oportunidades geradas pelo mercado de trabalho com o qual fazemos pontes”. 

Vanda Nunes sublinha que, para levar a cabo um projeto como a Valor T, “tivemos de nos focar não na existência de estereótipos e preconceitos, mas na forma de os quebrar. Foi aqui que nos concentrámos como ponto de partida e é assim que nos motivamos e procuramos mobilizar”.

Na hora de recrutar, “não nos foquemos desde logo e à partida na deficiência, na incapacidade, mas antes na capacidade e vontade de responder à oportunidade que a todos deve ser concedida, na concretização de direitos e deveres que devem estruturar um mercado de trabalho que se mobilize efetivamente pelo mérito”, defende Vanda Nunes.

Para a diretora da Valor T, “relativamente à deficiência, diria que, como em outras áreas, a existência de estereótipos e preconceitos se deve ao desconhecimento individual, à desinformação, à distância que, consciente ou inconscientemente, se cria por se pressupor como ‘um problema de outros’, os ‘outros que não somos nós’, os ‘outros que não estão nas nossas vidas’, e creio mesmo que é este alheamento que coletivamente se tem perpetuado na sociedade que gera e alimenta preconceitos”.

Defende que “importa antes agir orientados para as soluções e, por isso, lançámos a Valor T com uma ampla campanha de divulgação que quisemos difundir pelo país, em horário nobre de televisões, em muitos jornais, uma campanha positiva, mobilizadora, feita de garra e sorrisos de esperança, de pessoas para pessoas, as pessoas que não são afinal ‘outros’, mas são antes e sempre nós”.

Quanto aos desafios que as pessoas com deficiência ainda enfrentam no mercado de trabalho, a mesma fonte diz que: “Os constrangimentos e desafios são os que qualquer pessoa enfrenta, somando-se muitos outros que se prendem com as exigências acrescidas de acessibilidade, adaptação e integração para cada tipologia de deficiência. Mas acima de tudo com a discriminação que tende a eliminar a oportunidade de vir sequer a ser considerado, já nem digo avaliado, num processo de recrutamento”.

Questionada sobre a aceitação deste projeto no tecido empresarial, Vanda Nunes não tem dúvidas de que, apesar das dificuldades inerentes à crise pandémica, “as nossas empresas e os nossos empresários, que dão cartas em matéria de resiliência, criatividade para encontrar soluções e capacidade de trabalho, têm vindo a dizer ‘presente’ à Valor T e à missão coletiva que juntos estamos a trabalhar para concretizar”. E detalha que, neste momento, “mais de cem entidades empregadoras se registaram na plataforma, de diferentes áreas de atividade, que pretendem iniciar este caminho de contribuir para um mercado de trabalho, no qual se criem mais e melhores oportunidades, de conseguir e valorizar um trabalho digno”.

Sobre as categorias de empregos, refere que ainda é cedo para se conseguir fazer essa segmentação “porque essa procura, na fase em que estamos, decorre ainda da dimensão das necessidades das entidades e aqui as grandes cadeias de supermercados assumem naturalmente essa dimensão, o que é ótimo pela oportunidade massificadora que trazem a todo o território”. Adianta ainda que a Valor T está a trabalhar com todos os setores de atividade, para que as especificidades de cada setor sejam consideradas neste encontro para que os candidatos e as necessidades das empresas sejam feitos com prévio conhecimento, adequação e a melhor integração possível. “Trabalhamos num processo de ‘match’ próximo e personalizado para que possamos contribuir para uma relação de trabalho frutuosa e estável”, explica ainda. A faixa etária com maior preponderância está entre os 18 e os 30 anos, sendo que há candidatos de todas as idades.

Quanto ao que falta fazer para mudar situações de discriminação, Vanda Nunes acredita que “o tempo é de trabalhar de modo concertado, fazer pontes, somar e dimensionar boas práticas que tantas instituições concretizam e não nos permitirmos multiplicar em estudos e recursos, mas antes somar aprendizagens e agir”. “Sinto que estamos no caminho certo e que a consciência cívica é a força mobilizadora mais capaz de gerar na sociedade a efetiva mudança”, conclui Vanda Nunes.